Regime de Proteção de Denunciantes

É frequente que por receio de retaliação, os potenciais denunciantes não comuniquem as suas suspeitas – sendo assim, fundamental assegurar-lhes a proteção necessária à sua atuação sem perigo.
Artigos 11/07/2022

A transposição da Diretiva (UE) 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União, foi transposta para o Direito Nacional através da Lei n.º 93/2021, publicada a 20 de dezembro, que entrou em vigor no passado dia 18 de junho.

Esta lei, que conferiu uma gama mais alargada de direitos aos denunciantes e de obrigações para as empresas, públicas ou privadas, com sede ou sucursal em Portugal veio concretizar os mínimos exigíveis pela Diretiva, indo mais além desta nas suas previsões.

Quem pode denunciar e qual o fundamento da proteção dos denunciantes?

“As pessoas que trabalham numa organização pública ou privada ou que com ela estão em contacto no contexto de atividades profissionais são frequentemente as primeiras a ter conhecimento de ameaças ou de situações lesivas do interesse público que surgem nesse contexto. Ao denunciar violações do direito da União lesivas do interesse público, essas pessoas agem como denunciantes, desempenhando assim um papel essencial na descoberta e prevenção dessas violações, bem como na salvaguarda do bem-estar da sociedade, alimentando os sistemas de aplicação dos direitos nacionais e da União com informações conducentes à deteção, à investigação e à ação penal eficazes por violações do direito da União, aumentando deste modo a transparência e a responsabilização.”

Contudo, é frequente que, por receio de retaliação, os potenciais denunciantes não comuniquem as suas suspeitas – sendo assim, fundamental assegurar-lhes a proteção necessária à sua atuação sem perigo.

Quem é considerado denunciante?

Pode ser considerada denunciante a pessoa singular que denuncie ou divulgue publicamente informações sobre violações, obtidas no âmbito das suas atividades profissionais, independentemente da natureza destas atividades ou setor em que se inserem, estando ou não no exercício das funções naquele momento, no caso de processo de recrutamento ou, ainda, em fase de negociação pré-contratual.

O exercício das atividades profissionais não implica um determinado vínculo específico de trabalho, sendo classificada como denunciante a pessoa que tenha qualquer tipo ou regime de trabalho, independentemente de ser remunerado ou de estar em fase de estágio. Acrescenta-se que os titulares de participações sociais e as pessoas que pertencem a órgãos de gestão, administração, fiscais ou supervisão de pessoas coletivas também estão incluídas.

Assim, ao ser qualificada como Denunciante, a pessoa torna-se beneficiária da proteção conferida por este estatuto, estendendo-se esta às pessoas que a ajudem de forma confidencial, a qualquer terceiro que esteja associado ao denunciante e possa ser alvo de retaliação e a pessoas coletivas ou equiparadas que sejam detidas ou controladas pelo denunciante, para as quais este trabalhe ou esteja ligado profissionalmente.

Mas basta cumprir os requisitos acima para ser qualificado como Denunciante?

Não. É necessário que o denunciante 1) tenha fundamento razoável para crer que as informações são verdadeiras à data da denúncia, sendo exigível que 2) atue de boa-fé e 3) tenha denunciado internamente, externamente ou feito uma divulgação pública.

Qual a proteção conferida, pelo Regime, ao denunciante? 

É mantida a confidencialidade da identidade do denunciante, só podendo ser revelada devido a uma obrigação legal ou ordem judicial, após comunicação ao denunciante das razões da revelação;

É proibida a retaliação contra denunciantes, sendo-lhes devida uma indemnização pelos danos patrimoniais ou não patrimoniais causados de modo injustificado, no contexto profissional, motivado por uma denúncia interna, externa ou divulgação pública; Releva, ainda, para este efeito, a inversão do ónus da prova e a presunção de que determinados atos constituem retaliação, tais como alterações das condições de trabalho ou a aplicação de uma sanção disciplinar, quando cometidos dois anos após a queixa ou divulgação pública;

Direito a proteção jurídica, conforme o regime da proteção de testemunhas, em processo penal;

Não ser sujeito de responsabilidade disciplinar, civil, contraordenacional ou criminal pela mera denúncia ou divulgação pública de uma infração (se esta for feita de acordo com os requisitos impostos, acima explicados).

E aos denunciados?

Estes mantêm os seus direitos e garantias processualmente reconhecidos, como a presunção da inocência e as garantias de defesa do processo penal, beneficiando do mesmo regime que o denunciante tem quanto à confidencialidade da identidade.

Qual é a consequência da violação das regras de proteção do denunciante?

As violações constituem infração administrativa e o procedimento respetivo deve ser levado a cabo pelo Mecanismo Nacional Anticorrupção (MNAC).

Estabelecem-se como contraordenações muito graves o impedimento da apresentação ou o seguimento da denúncia, a prática de atos retaliatórios, o incumprimento do dever de confidencialidade e a comunicação ou divulgação pública de informações falsas, puníveis com coimas de €1.000 a €25.000, no caso de pessoas singulares, ou €10.000 a €250.000 quanto a pessoas coletivas.

Por outro lado, estão previstas infrações classificadas como contraordenações graves, tais como o caso da entidade pública ou privada não ter previsto e instalado um canal interno, ou não garantir a exaustividade, integridade e confidencialidade da identidade ou anonimato dos denunciantes, entre outras, relativamente às quais se aplicarão coimas entre os €500 e os €12.500, sendo pessoas individuais, ou entre os €1.000 a €125.000, sendo pessoas coletivas.

Como denunciar?

A denúncia pode ser feita relativamente a violações que tenham acontecido, estejam a acontecer ou seja razoável prever o seu acontecimento, assim como às tentativas de ocultação dessas violações. As denúncias devem ser apresentadas através dos canais de denúncia interna, externa ou divulgadas publicamente.

Contudo, só poderão apresentar a denúncia através de canal externo quando 1) não exista canal interno, 2) existindo, apenas permita denúncias feitas pelo trabalhador (e o denunciante não o seja), 3) tenha motivos razoáveis para crer que a infração não pode ser conhecida ou resolvida internamente e possa haver risco de retaliação, 4) tenha inicialmente apresentado uma denúncia interna sem que lhe tenham sido comunicadas as medidas previstas ou adotadas na sequência da denúncia no prazo máximo de três meses a contar da receção ou sem que sejam comunicadas ao denunciante o resultado da análise efetuada, no prazo de 15 dias após a respetiva conclusão; ou, por último, se e) a infração constituir crime ou contraordenação punível com coima superior a € 50.000.

Ademais, só poderão divulgar publicamente uma infração em dois casos:

  1. Caso tenha motivos razoáveis para crer que a infração pode constituir um perigo iminente ou manifesto para o interesse público, que não pode ser eficazmente conhecida ou resolvida pelas autoridades competentes, atendendo às circunstâncias específicas do caso, ou que existe um risco de retaliação inclusivamente em caso de denúncia externa; ou
  2. Caso tenha apresentado uma denúncia interna e uma denúncia externa, ou diretamente uma denúncia externa nos termos previstos na presente lei, sem que tenham sido adotadas medidas adequadas nos prazos previstos nos artigos 11.º e 15.º

Se o denunciante divulgar publicamente alguma infração, sem integrar qualquer um dos dois casos referidos, não beneficiará da proteção conferida pela lei, podendo apenas beneficiar das regras aplicáveis em matéria de sigilo jornalístico e de proteção de fontes.

Como aceder aos canais de denúncia internos?

  • Apresentação

Os canais internos devem ser criados pelas próprias empresas, sendo operados internamente, para receber e dar seguimento às denúncias (ainda que possam ser operados externamente para efeito de receção).

As denúncias podem ser apresentadas oralmente – por telefone, em mensagem de voz ou em reunião presencial, a pedido do denunciante – ou por escrito, pelos trabalhadores, anónimas ou com identificação.

  • Seguimento

Nos sete dias que seguem a denúncia, as entidades devem notificar o denunciante da receção da mesma e informá-lo dos requisitos, autoridades competentes e forma e admissibilidade da denúncia externa.

No prazo de três meses, após conduzirem um inquérito quanto às alegações contidas na denúncia, até chegarem mesmo a cessar a infração (com ou sem recurso às autoridades externas competentes), se for caso disso, as entidades devem comunicar ao denunciante quais foram as medidas previstas ou adotadas. Pode, contudo, o denunciante, 15 dias após a denúncia, requerer que as entidades lhe comuniquem o resultado da análise.

Que entidades são obrigadas a ter canais de denúncia internos?

  • As empresas públicas ou privadas, com sede ou sucursal em Portugal, com 50 ou mais trabalhadores (pessoas coletivas, incluindo o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público);
  • As entidades contempladas no âmbito de aplicação dos atos da União Europeia referidos na parte I.B e II da Diretiva, com sede ou sucursal em Portugal;

Contudo, as entidades obrigadas que não sejam de direito público e que empreguem entre 50 e 249 trabalhadores podem partilhar recursos no que respeita à receção de denúncias e respetivo seguimento.

Como se processam as denúncias externas?

  • Apresentação

São apresentadas às autoridades que, dependendo da denúncia, deveriam ou poderiam ter conhecimento da matéria em causa, nomeadamente o Ministério Público, os órgãos de polícia criminal, o Banco de Portugal, as inspeções-gerais, entre outros. Se for apresentada a entidade incompetente, é remetida oficiosamente à competente, sendo o denunciante notificado.

Nos casos em que não exista autoridade competente para conhecer da denúncia ou nos casos em que a denúncia vise uma autoridade competente, deve a mesma ser dirigida ao Mecanismo Nacional Anticorrupção.  Se este for o visado, deve fazer-se a denúncia ao Ministério Público, que abrirá inquérito sempre que os factos nela descritos constituam crime.

Quanto ao conteúdo da denúncia, pode dar-se o caso deste justificar o seu arquivamento, quando a infração seja de gravidade diminuta, insignificante ou irrelevante, for repetida quanto a uma primeira denúncia sem que se justifique seguimento diferente e/ou for anónima e não se retirarem indícios de infração.

  • Seguimento

No prazo de sete dias, as autoridades competentes notificam o denunciante da receção da denúncia – salvo se houver pedido expresso em contrário do denunciante ou caso tenham motivos razoáveis para crer que a notificação possa comprometer a proteção da identidade do denunciante.

Em seguida, praticam os atos adequados à verificação das alegações e, se for caso disso, à cessação da infração denunciada (inclusive, por abertura de inquérito ou de processo ou da comunicação a autoridade competente).

No prazo máximo de três meses a contar da data da receção da denúncia, ou de seis meses quando a complexidade da denúncia o justifique, as autoridades competentes comunicam ao denunciante as medidas previstas ou adotadas para dar seguimento à denúncia e a respetiva fundamentação.

Como nos procedimentos de canais internos, o denunciante pode requerer, a qualquer momento, que as autoridades competentes lhe comuniquem o resultado da análise efetuada à denúncia no prazo de 15 dias após a respetiva conclusão.

Quais os requisitos obrigatórios que os canais de denúncia externa devem cumprir?

  • Assegurar a sua independência e autonomia, quanto aos restantes canais;
  • Assegurar a confidencialidade e integridade de cada denúncia recebida;
  • Assegurar-se da impossibilidade de acesso a pessoas não autorizadas aos canais;
  • Conservar a denúncia, durante cinco anos ou no decorrer da pendência de processos judiciais ou administrativos;
  • Formar os funcionários responsáveis pelo tratamento das denúncias.

Quais as obrigações das autoridades?

As autoridades estão obrigadas à prestação de uma série de informações nos respetivos sites da internet, nomeadamente, mas não só, às condições necessárias para beneficiar da proteção desta Lei, aos dados de contacto dos canais de denúncia externa, aos procedimentos aplicáveis às denúncias, ao regime de confidencialidade e tratamento de dados pessoais, ao tipo de medidas que podem ser tomadas.

São ainda obrigadas à apresentação de relatórios anuais sobre as denúncias, apresentados à Assembleia da República, até ao final do mês de março, onde devem incluir o número de denúncias externas recebidas, de processos iniciados e resultados, a natureza e o tipo de infrações denunciadas e, por último, o que for pertinente para melhorar os procedimentos.


O conteúdo desta informação não constitui aconselhamento jurídico e não deve ser invocado nesse sentido. Aconselhamento específico deve ser procurado sobre as circunstâncias concretas do caso. Se tiver alguma dúvida sobre uma questão de direito Português, não hesite em contactar-nos.

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