Perda de Bens Antes de Condenação: Uma Inconstitucionalidade em nome da Eficácia?

A 20 de junho de 2024, a Ministra da Justiça apresentou a Agenda Anticorrupção com 32 medidas, incluindo um “novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado”, em linha com a Diretiva 2024/1260 do Parlamento Europeu.
Artigos 03/07/2024

A 20 de junho de 2024 foi apresentada a Agenda Anticorrupção pela Ministra da Justiça, consistindo a mesma num conjunto de 32 medidas aprovadas pelo Conselho de Ministros.

A medida constante desta Agenda alvo de maior debate é referente à criação de um “novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado, fazendo reverter bens e proventos económicos da corrupção a favor do Estado”, nomeadamente tendo em conta a necessidade de transposição da Diretiva 2024/1260 do Parlamento Europeu e do Conselho, datada de 24 de abril de 2024, relativa à recuperação e perda de bens.

Nesta diretiva, que tem como objetivo expresso o exposto no seu considerando n.º 7 “facilitar e assegurar esforços eficazes em matéria de recuperação de bens em toda a União”, não só consta a possibilidade de perda alargada de bens, mencionada no considerando n.º 13 e concretizada no artigo 14.º, como se estabelece a possibilidade de perda não baseada numa condenação, sobre a qual se elabora no considerando n.º 30 e cujas condições para a verificação se encontram explicitadas no artigo 15.º.

Perda Alargada de Bens

No que à perda alargada de bens diz respeito, a diretiva não implicará grandes mudanças no ordenamento jurídico português, dado que este instituto já se encontra previsto no artigo 7.º da Lei n.º 5/2002.

No referido artigo é estabelecida uma presunção segundo a qual constitui “vantagem da atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito”, sendo considerado todo o património recebido pelo arguido nos cinco anos anteriores à sua constituição como tal.

No entanto, não deixa de ser relevante a garantia imposta pela Diretiva, no seu considerando n.º 34, de que é necessária a existência de factos e circunstâncias suficientes para o tribunal se convencer de que os bens resultam de infrações penais, devendo a avaliação ser feita de forma casuística.

A Ausência de Condenação

Relativamente à perda de bens sem uma condenação, esta só pode ocorrer, nos termos do artigo 15.º da diretiva, se, por doença do suspeito ou arguido, fuga ou morte do mesmo, assim como término de prazo de prescrição inferior a 15 anos após início de o processo penal, não tenha sido possível obter uma condenação no processo penal, relativa às infrações suscetíveis de gerar benefício económico substancial.

Da análise do artigo transparece o carácter excecional da aplicação do mecanismo, que, ainda assim, não deixa de suscitar questões relativamente à conformidade com o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou quanto à possível inconstitucionalidade do instituto de perda alargada de bens previsto no artigo 7.º da Lei n. º5/2002, no sentido de esta não se verificar.

Em múltiplos acórdãos a questão controversa foi abordada, nomeadamente com recurso a uma argumentação segundo a qual, tratando-se de uma presunção ilidível que só opera após condenação, não se trata de apurar uma eventual responsabilidade penal de arguido, que a partir da condenação se passa a presumir. A consequência desta premissa é a de que, não tendo o mecanismo a natureza de uma pena, apesar de ter reconhecidamente como finalidade a prevenção criminal, não lhe é aplicável o princípio constitucional de presunção de inocência.

Este entendimento do Tribunal Constitucional, que assenta precisamente no facto da presunção estabelecida no artigo 7.º da Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro ocorrer após a condenação e não antes pode implicar que a transposição da diretiva seja alvo de uma declaração de inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência, restando ao legislador português, aquando a transposição da diretiva, ter em consideração o equilíbrio delicado entre este mesmo princípio e a eficácia e prevenção criminal que se pretende atingir com o referido instituto.


O conteúdo desta informação não constitui aconselhamento jurídico e não deve ser invocado nesse sentido. Aconselhamento específico deve ser procurado sobre as circunstâncias concretas do caso. Se tiver alguma dúvida sobre uma questão de direito Português, não hesite em contactar-nos.

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