Liberdade de Expressão vs. Tutela dos Direitos de Personalidade — Existem mesmo limites do humor?

O "Contencioso em Foco" é uma rubrica Caiado Guerreiro, que conta com a participação da partner Sandra Ferreira Dias — co-coordenadora da equipa de Contencioso e Arbitragem — e da advogada Olga Stelmashchuk, onde são esclarecidas dúvidas e questões desta área do Direito. O tema desta semana é “Liberdade de Expressão vs. Tutela dos Direitos de Personalidade – Existem mesmo limites do humor?”, uma reflexão jurídica sobre até que ponto a sátira e a comédia podem ser protegidas como expressão legítima, e quando poderão ultrapassar os limites e colidir com direitos fundamentais como a honra, a imagem e a dignidade da pessoa humana.
Artigos 10/07/2025

A liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, é um dos pilares essenciais das sociedades democráticas e pluralistas, consagrada constitucionalmente em diversos ordenamentos jurídicos e reiterada em convenções internacionais, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Contudo, a sua projeção prática é frequentemente tensionada por outros direitos de igual dignidade, como a honra, a reputação, a imagem e a dignidade da pessoa humana. Este conflito torna-se particularmente sensível quando se fala de formas artísticas como o humor, cuja natureza irreverente, por definição, desafia normas sociais, figuras públicas e até verdades instituídas.

É neste contexto que emerge o eterno debate: até que ponto podemos ou devemos censurar o humor? E, por outro lado, quando é que o humor deixa de ser exercício de liberdade para se transformar em violação de direitos de personalidade?

Um exemplo paradigmático dessa tensão é o processo movido pelos cantores e irmãos Sérgio e Nelson Rosado (“os Anjos”) contra a humorista Joana Marques. No centro do litígio está uma publicação nas redes sociais da humorista, autora do programa Extremamente Desagradável, conhecido pelo seu tom satírico e ironia mordaz, onde a humorista comenta e parodia figuras públicas e acontecimentos do espaço mediático.

O processo invoca a tutela civil de direitos de personalidade – honra, reputação e imagem –, que encontram proteção também na esfera penal através dos crimes de injúria e difamação. No entanto, é importante sublinhar que a jurisprudência portuguesa tem sido clara ao estabelecer que tais crimes exigem a imputação de factos ofensivos da honra ou juízos de valor lesivos diretamente dirigidos à pessoa visada. Por outro lado, críticas a desempenhos públicos ou juízos sobre obras e atuações, por mais contundentes que sejam, tendem a encontrar guarida no direito à liberdade de expressão.

No caso em apreço, não parece haver indícios de ataque à dignidade pessoal dos cantores, mas sim uma crítica à sua atuação enquanto profissionais do meio artístico. A sátira, ainda que incómoda ou mordaz, insere-se no campo legítimo da liberdade de expressão, especialmente quando dirigida a figuras públicas, cuja atuação está, inevitavelmente, sujeita a maior escrutínio.

A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem afirmado de forma consistente que figuras públicas devem tolerar um grau mais elevado de crítica, precisamente por desempenharem um papel de maior visibilidade social. Esta maior exposição implica, por um lado, mais responsabilidade pelas suas ações, e, por outro, maior tolerância quanto ao juízo crítico, incluindo o humorístico.

Este princípio tem sido reiterado por jurisprudência dos tribunais portugueses, que tendem a adotar um conceito mais amplo para os limites da crítica quando os visados são figuras públicas, sobretudo em domínios como o jornalismo, o comentário político ou a sátira artística.

A liberdade de expressão não é um direito absoluto – deve ser exercida de forma responsável, ponderando os impactos sobre os direitos de terceiros. O humor pode e deve ser ousado, provocador, contestatário. Mas não deve perder de vista os limites do respeito mínimo devido à dignidade humana. A fronteira entre a crítica mordaz e a crueldade gratuita é ténue – e é precisamente nesse espaço que se colocam os maiores desafios jurídicos e sociais da contemporaneidade.

O humor é – e deve continuar a ser – um instrumento de liberdade, crítica social e emancipação cultural. Contudo, como qualquer forma de expressão, não vive num vácuo legal ou ético. A sua legitimidade depende do contexto, da intenção e, sobretudo, do impacto real sobre os visados.

No caso que opõe os Anjos a Joana Marques, parece prevalecer o entendimento de que não houve ataque pessoal dirigido à dignidade dos cantores, mas sim uma crítica (ainda que contundente) à sua atuação pública. Tal crítica encontra respaldo na liberdade de expressão, especialmente no contexto artístico e humorístico, não ultrapassando os limites da tolerância social nem configurando, em rigor, uma violação de direitos de personalidade.

Em suma: o humor deve ser livre, mas não irresponsável; provocador, mas não destrutivo; satírico, mas não ofensivo. Cabe ao Direito, e à sociedade, manter viva esta linha de equilíbrio, onde o riso não se transforma em censura e a dignidade não é sacrificada em nome da piada.


O conteúdo desta informação não constitui aconselhamento jurídico e não deve ser invocado nesse sentido. Aconselhamento específico deve ser procurado sobre as circunstâncias concretas do caso. Se tiver alguma dúvida sobre uma questão de direito Português, não hesite em contactar-nos.

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